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"A alma que não se abate, que recebe indiferentemente tanto a tristeza como a alegria, vive na vida imortal."Fonte - Bhagavad-Gita

domingo, 5 de junho de 2011

Bhava - O Divino estado de Amor Universal - Cap. 17 - por Satyananda


No nosso período de sadana, éramos incentivados a obedecer e essa obediência deveria nascer de experiência espiritual e não da mente. Não porque a gente leu em algum livro, não porque a gente emprestou essa experiência de outra pessoa, mas esse estado de servidão deveria ser natural. Para que a gente conseguisse fixar essa sensação, a gente ficava muito tempo meditando. A meditação aquieta a mente, esvazia a nossa relação com o mundo externo e esvazia o mundo interno.

Passávamos de meses a anos com essas práticas. São duas asas nesse processo, como nosso mestre costumava falar. Para alçar o vôo da iluminação a gente precisava de meditação e bhakti (exercício devocional). Esse exercício devocional leva a gente a cada ação ser uma ação de serviço. Você olha pra todos os seres como se cada um fosse Deus em forma humana. A gente se entrega para esse estado de servidão.

Servir o outro era uma experiência de prestar atenção em cada palavra, em cada gesto, se colocar no lugar do próximo, compreendê-lo de verdade, de dentro pra fora. Cada ação é justificada como uma forma natural. Nesse estado, uma ação negativa do outro já não é mais lida como negativa, e uma ação positiva também já não é mais importante.

Certa vez, no meio de todos esses exercícios, eu estava sentado embaixo de uma árvore num parque próximo ao Ashram alimentando as pombas. Peguei os farelos do que sobrou do lanche e estava jogando absolutamente absorto no movimento delas, posando e compartilhando o alimento entre si. Sem olhar para o lado, percebi a presença de um homem sentando à minha direita, abaixo de outra árvore. Era um dia muito quente e as sombras eram a única solução pra se manter sentado ali de alguma forma.

Olhei instintivamente para o lado. Percebi que era um mendigo daqueles que carregam sacos e provavelmente não tomava banho há muito tempo. Ele estava ali, olhando para a mesma situação, para os pássaros. Nos olhamos brevemente. Houve um bem-estar de aceitação de um com a presença do outro. Naquela época de minha vida, não havia nenhuma discriminação entre aquelas pombas, aquele homem ou qualquer condição social. Simplesmente olhava para aquela pessoa. Tudo era um momento único, intransferível, acontecendo sob atenção plena.

De repente, aconteceu algo inusitado. Várias pombas foram pegar o mesmo pedaço de pão e quando uma tocou, e mais duas tocaram, antes de puxarem o pão ao mesmo tempo, elas largaram. Largaram com tanta intensidade – acreditando que as outras iam pegar, imagino eu – que elas deram as costas e deixaram aquele enorme pedaço de pão.

Virei para o lado e o nosso amigo mendigo abriu um sorriso que depois se transformou numa gargalhada. Aquele pedaço de pão estava ali parado. Nenhuma das pombas chegou mais perto dele. Olhei com surpresa, o mendigo se levantou, pegou aquele pedaço de pão -o maior deles- sorriu, olhou para mim e falou:

- Acho que elas me deram. Você está servido?
- Não, muito obrigado... Respondi.

Fiquei olhando a cena, a imensa felicidade daquele homem comendo aquele pão seco do chão que era, na verdade, o resto das pombas. Ele era muito feliz, com a mão suja, encardida, os dentes quebrados que dava pra ver de longe, e um forte odor de falta de limpeza. Ele sentou com a satisfação de uma pessoa que se senta num restaurante para comer seu prato predileto. Olhava pra mim, sorria e falava:

- Obrigado! Obrigado! Obrigado.

Acredito que aquele agradecimento era pra Deus. Era tanta alegria que aquele homem deu um dos maiores ensinamentos da minha vida. Aquele homem sentou-se à sombra, como o monge estava sentado. Contemplou o mundo lá fora, como o monge estava contemplando. Sorriu com uma compaixão e um carinho enorme para aqueles passarinhos, mas ele tinha uma qualidade a mais. Ele tinha realmente em sua vida a Vontade de Deus. Ele vivia realmente na vontade do acaso.

Talvez ele não comece naquele dia, mas a humildade dele era tão grande -porque se ele fosse uma pessoa movida pela fome ele teria simplesmente espantado as pombas e recolhido os pães- que ele esperou para ver se ia sobrar. Ele foi se alimentar das sobras daquelas aves. A gratidão dele era imensa, como se tivesse ganhado na loteria ou conseguido fechar o negócio da vida dele. E era só um pedaço de pão velho, esquecido. Esquecido até pelos animais.

Lembro de ter saído com lágrimas nos olhos e de ter sorrido para ele com um amor imenso. Olhei para a sua roupa e seus pés sujos; ele estava descalço. Abri minha mochila e vi que tinha um casaco sobrando, uma sandália que eu usava no ashram e uma meia limpa.
- Eu estou te dando isso.
- Mas eu não tenho como levar. Só tenho este saco.
- O chinelo você leva no seu pé, a meia você leva no saco pra quando tiver frio. E o casaco eu tô te dando porque eu tenho certeza que você dorme no tempo.
- Não, eu durmo embaixo do céu! Ou embaixo de uma sombra, ou embaixo de uma coberta. Eu durmo em todos os lugares, meu filho.

Senti um nó na garganta muito profundo. Aquele homem sintetizava tudo o que eu lia sobre os sadhus, sobre os renunciantes de verdade, os tota-puris que andavam na Índia. E ele era um simples mendigo numa cidade gigante, onde temos 13 mil moradores de rua hoje, na época, tinha bem menos. E esses seres são praticamente invisíveis, são os nossos intocáveis.

Naquele dia, eu lembro de ter caminhado até o ashram, sentado para devocionar e cantar com uma gratidão enorme pelo simples fato de respirar. Comecei a entender que bhava, ou a dita divina é uma imensa gratidão por a gente perceber que tudo ao nosso redor é Deus, que estamos mergulhados nessa amorosa companhia, nessa calorosa condição de amor incondicional. E aquele mendigo, por muitos anos e até hoje foi considerado um grande mestre. Pelo aprendizado do simples sentimento de contemplar e amar.

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